A deriva nos paralelos 18 e 19


A deriva nos paralelos 18 e 19

Por Ivan Marinovic Brscan*

Para uns o “fim do mundo”. Para outros, “ossos do ofício”. Para mim, um tremendo aprendizado, mais um item no meu currículo náutico.

Ficar 45 horas a deriva e mais 17 horas sendo rebocado não é nada agradável, mas trás uma carga repleta de muitas lições que podem ser úteis para quem sonha em sair pelo mundo a bordo de um veleiro.
Comandante Ronaldo Gaúcho e eu, Ivan Marinovic Brscan (sentado)

Tudo começou em Ilhéus, no dia 4 de marco de 2013, quando embarquei no veleiro Timshel, modelo Mod 30, sob o comando do experiente Ronaldo Luiz Ehrenbrink, mais conhecido no meio náutico como Ronaldo Gaúcho, embora residente em Copacabana, Rio de  Janeiro.

De Ilhéus, rumamos para a aplausível e exótica Santo André, Bahia, onde apoitamos na frente de uma ban (base de apoio náutico) do restaurante Gaivota, onde fomos bem acolhidos pela proprietária Ana e seu marido, que imediatamente nos colocou a disposição banheiro e água doce para duchas e abastecimento dos tanques, itens preciosos para quem veleja..

De lá, embarcou meu aluno Marcos Xavier de vela, entusiasta de esportes náuticos, e sua namorada Elizabete e rumamos para Abrolhos. Descrever esse pequeno arquipélago, um santuário ecológico, requer um capítulo a parte com muiiiitas páginas de relato.
Marcos Xavier, marinheiro de primeira viagem


Fomos muito bem recebidos pelos oficiais da Marinha Brasileira que moram no arquipélago e nos mostraram o farol construído em 1861 durante o reinado de Dom Pedro II.  O Farol de Abrolhos, situado na Bahia, está no topo da Ilha de Santa Bárbara, a maior ilha do arquipélago de Abrolhos (contração da frase “abra os olhos”) onde fica também o Parque Nacional Marinho de Abrolhos.

Pré-fabricada na França, o farol é impressionante e está conservadíssimo. Trata-se de uma torre cilíndrica de ferro fundido, com 22 metros de altura, pintada com faixas preta e brancas horizontais. Lindo!

O farol emite um relâmpago branco a cada seis segundos com um alcance de 51 milhas. Ele é tão poderoso que de longe, vimos o seu facho de luz antes de vê-lo acesso. Dizem ser um dos mais potentes do mundo. E pelo que nós pudemos constatar o alcance das suas ondas de rádio VHF também é poderoso e isso nos ajudou muito durante nossos momentos de deriva, pois foi, durante um tempo, nosso único canal de comunicação para pedido de socorro.

Farol de Abrolhos, cuja antenas de rádio no seu topo, nos ajudou

Na Ilha de Santa Bárbara, fomos bem recebidos pela Berna, funcionária do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ), órgão ambiental do governo brasileiro, criado em 2007, que nos deliciou com relatos das atividades de preservação ambiental  do Parque Nacional Marinho de Abrolhos.
Jatobás de monte, nas ilhas

Ela nos autorizou mergulhos na ilha de Santa Bárbara e nos instruiu do que podíamos e não podíamos fazer. Claro que obedecemos. Pena que ela não pode nos conduzir para conhecer outra ilha. Mas foi tudo de bom.

Pernoitamos a bordo, ancorado na ilha e suspendemos âncora a tarde com vento em popa, de intensidade média que foi aumentando gradativamente até o ponto de precisarmos rizar um ponto da vela . Essa técnica, o rizo,  visa diminuir o tamanho da vela grande e por conseqüência  a pressão do vento deixando o barco mais seguro e controlável.

O vento e as ondas vinham de nordeste e estávamos velejando com vento em popa, quase rasa. Com as ondas vindas da mesma direção, tínhamos que “surfá-las”, no que era até divertido e desafiante, mas muito cansativo, após duas horas de turno de cada tripulante. 

Acontece que o vento foi aumentando e abaixamos a vela mais uma vez, no segundo ponto de rizo e aos poucos foi virando quase que uma “briga” contra as forças da natureza.

Os três tripulantes se revezavam para manter o barco no rumo, com ventos de 25 nós e ondas de 2,5 metros de altura e períodos muito curtos entre uma e outra. Já tinha passado por situações piores, mas timonear durante um turno de duas horas, o cansaço e incomodo nas costas começam a predominar. 

O importante é evitar atravessar (o barco tem a tendência a orçar, ou melhor, ir no rumo do vento e precisávamos corrigir o rumo na roda de leme) e principalmente evitar o jibe, onde a retranca com a vela grande (também chamada de mestre), muda violentamente de lado, podendo causar estrago na própria retranca ou no mastro. Eu acredito que o esforço de corrigir o rumo do barco, que tinha tendência a orçar, foi o motivo principal do esfacelamento da pá de leme.

O veleiro Timshel respondia muito bem aos comandos dos esforçados timoneiros, inclusive Marcos, marinheiro de primeira viagem no mar. 

Adeus à pá de leme

Às 23, horas, no turno do comandante Ronaldo, em uma velejada em popa quase rasa, no mínimo emocionante, escutamos o barulho de algo trincando e o veleiro automaticamente se colocou na linha do vento e parou batendo as velas com o vento forte e as ondas agitadas.

Ronaldo percebeu imediatamente que havia perdido a pá do leme. Descemos a agitada vela grande e enrolamos a genoa, como precaução para melhor avaliar a situação.

A essa altura, estávamos a quase 20 milhas da costa. Havíamos percorrido cerca de 60 milhas desde Abrolhos. Nosso destino, Vitória, estava a 100 milhas de distância.

Embora discordasse de Ronaldo, ele decidiu esperar até o amanhecer para proceder a montagem de um leme de fortuna (improvisado) com o paineiro (assoalho da embarcação). Mas, de manhã, o mar estava agitado. A ideia foi imediatamente refutada.

Tentamos outras possibilidades com a mareação das velas. Não tinha jeito. O máximo que conseguimos foi deixar a embarcação em “árvore seca” (sendo levado pelo vento, sem velas) fazendo com que o veleiro se propulsione adiante, tendo o próprio casco como vela.

O máximo que conseguimos foi uma média de 1,5 nós de velocidade, sabendo que cerca e um nó, correspondia à velocidade da correnteza e meio nó, o vento forte que acredito ser da ordem de 20 a 25 nós, batendo no casco, dando seguimento adiante ao veleiro pelo vento que vinha de través.

Por sorte, o vento pelo través nos levava ao sul, mas precisávamos ir para sudoeste. O vento nos aproximava da cidade de Vitória, nosso destino, mas nos empurrava para alto mar.

De um lado, era mais seguro derivar em alto mar do que perto da costa, com risco de encalhar na praia e pior, ir de encontro às rochas, embora exista sempre a possibilidade de jogar âncora, há também a possibilidade dela não unhar e correr solta.

Bendito VHF

Avaliando todas as possibilidades, demorou muitas horas para percebermos que não tínhamos outro jeito senão pedir ajuda. E foi ai que percebemos o quanto é valioso para a segurança náutica, apesar das suas limitações, um rádio VHF, utilizado pouquíssimas vezes no veleiro Timshel e em muitos veleiros de recreio. 
O rádio VHF é o equipamento para comunicação por voz que equipa a grande maioria dos barcos cabinados seja de recreio, seja de pesca, e até navios.

Após dormirmos a primeira noite a deriva, de manhã, não havia nenhuma embarcação a vista. Pedimos ajuda pelo rádio a esmo.

“Veleiro Timshel solicita ajuda a qualquer embarcação que esteja nos escutando. Copia”. E ai veio a surpresa.

Não era uma embarcação que nos respondeu, mas o rádio-farol da Marinha, em Abrolhos, onde havíamos visitado o dia anterior.

“Mas como?” Indagou Arnaldo. “Estamos a quase 60 milhas de Abrolhos!!!!!. A recepção era excelente, embora o oficial da Marinha nos ouvia de forma entrecortada, pois tínhamos que repetir várias vezes a mesma informação.

Isso é fácil de explicar, porque ouvíamos bem e éramos ouvidos com dificuldade. O transmissor do rádio-farol, além de ser mais potente, sua antena se situa a 22 metros de altura e mais a altura do morro que não sei precisar e seu alcance pode chegar a mais de 50 milhas (1 milha = 1,8 quilômetros).

Todo veleiro ou lancha oceânico tem, por lei, que ser equipado com um rádio VHF. Seu alcance é muito variável, pois depende da altura da antena, propagação etc. Normalmente o rádio VHF alcança de  18 a 36 milhas (10 a 20km). Mas estávamos a quase 60 milhas de abrolhos quando guando alcançamos as ondas do rádio-farol.

Relatamos o ocorrido com nossa embarcação ao oficial da Marinha e solicitamos ajuda, ou melhor, reboque.

Uma operadora de mergulho, que estava em Abrolhos, se prontificou a ajudar, no período da tarde, quando terminasse suas operações de mergulho juto aos turistas, cobrando R$ 2 mil pelos serviços. Aceitamos prontamente.  Esperamos até o início da tarde, em vão.

Concordamos com o preço, sobretudo devido a tripulante Elizabete estava assustada com a situação e não escondia sua apreensão. Queríamos uma solução final rápida, sobretudo por ela, que parecia estar no limiar de uma crise de nervos.

Quando a lancha estava prestes a partir, eles se recusaram a rebocar nossa embarcação para Vitória. Eles queriam nos rebocar de volta para Abrolhos. O comandante Ronaldo recusou, pois em Abrolhos não havia condições para reparar o leme do Timshel e também o reboque seria contra o vento,  a correnteza e as ondas de 2,5 metros. Enfim, uma situação penosa para o barco e também para a tripulação, pois o balanço, ou melhor , a caturragem, ia ser grande.

Quase no final da tarde, o rádio-farol nos chama pelo VHF para nos comunicar que a operadora de mergulho havia suspendido a operação, provavelmente pelo fato de o montante combinado não valer a pena.

Elizabete deu início a uma crise de choro ao ouvir a notícia pelo rádio. Para ela, parecia que o mundo estava desabando sobre sua cabeça. O pânico só não se instalou porque seu namorado, Marcos Xavier, estava disposto a pagar R$ 2 mil apenas para resgatar o casal. Mas o rádio-farol não conseguiu contato com a operadora para fazer a proposta. Após horas de espera, uma nova esperança.

Berna, a funcionária do ICMBio, que tão bem nos havia recebido em Abrolhos, havia conseguido autorização para vir ao nosso encontro com uma lancha da SEAP – Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca. Eles anunciaram partir após abastecer a lancha. Novo alívio, nova decepção.

Após várias horas de espera, novamente recebemos a chamada do rádio-farol para nos informar que a lancha não tinha autonomia para nos alcançar.

Imaginem o estado da Elizabete ao ouvir mais esta notícia pelo rádio. Nova crise de choro. Mais palavras de consolo do namorado e dos demais tripulantes.

Após essas duas decepções, novos personagens entraram na história, dando seguimento a uma sucessão de novas esperanças e novas decepções. E várias horas entre o intervalo entre cada uma delas. Mas com final feliz com desfecho lindo de solidariedade marítima.

Já estava disposto a colocar a “boca no trombone”. Acionar o Papa se for preciso. Mas o último  tinha renunciado e nem mesmo havia sido eleito o próximo.

Vitória Rádio

Nisso, ouvimos pelo rádio VHF, várias chamadas da Vitória Rádio e lembramos que se trata de um serviço Embratel que conecta as embarcações para que estas possam realizar ligações telefônicas. Bem lembrado e feito.

O canal 16 do rádio VHF é constantemente monitorado por autoridades e clubes náuticos no mundo todo e ouvido por todos. É praxe todos ficarem conectados ao canal 16 para o primeiro contato e pedido de socorro. Para não tumultuar o canal, fazemos o primeiro contato e escolhemos outro canal para prosseguir a conversa.

A Embratel gerencia o Sistema Móvel Marítimo. Através de uma rede de estações costeiras, as operadoras, na escuta 24 horas por dia, usa o canal 16 do VHF para estabelecer a comunicação entre uma embarcação e um telefone em qualquer lugar do mundo.

Resolvemos então entrar em contato com o nosso colega Sérgio Chagas, coronel do exército na reserva, proprietário do veleiro Intuição, residente em Aracaju, velejador experiente e muito solidário. Sabíamos que ele conhecia bem a região e tem contato com o Iate  Clube do Espírito Santo.

Com seu espírito agitado, sabíamos que Chagas não somente ia nos ajudar a “colocar a boca no trombone” como também a orquestrar nosso resgate. Dito e feito. Estávamos corretos. Mas até lá, muita água rolou por debaixo do Timshel e intermináveis horas se passaram.

Ao acionar a Vitória Rádio (existe também a Rio Rádio, Salvador Rádio, todos da rede Embratel), as operadoras Izabel e Lucilene entenderam nosso drama e foram muito eficientes em todas as ligações que precisávamos fazer, enquanto tínhamos alcança para receber e emitir os sinais de rádio. Mas tarde, essa comunicação simplesmente sumiu, pois havíamos nos distanciado da costa. Recebíamos suas ondas, mas elas não recebiam as nossas.

Não me lembro se foi Izabel ou Lucilne que fez a ligação para Chagas. Ela também acionou a Capitania dos Portos e também o Iate Clube do Espírito Santo. Chagas vai amargar uma conta de telefone bem gordinha. 
Além dos telefonemas para agilizar nosso resgate, uma ligação da Embratel via rádio VHF para qualquer telefone em terra custa R$ 6 o minuto e quem paga é aquele que recebe.

Chagas já havia percebido que algo estava errado conosco antes, pois o veleiro Timshel estava equipado com uma dos mais novos equipamentos de segurança no mar, o Spot.

Esse aparelho, pequeno, simples e barato (custou R$ 400), tem a função de emitir, via satélite, nossa posição geográfica para um site da Spot que, em seguida, envia nossa posição, por e-mail a todos que estiverem cadastrados.

Assim, Chagas e os demais parentes e amigos do Ronaldo, recebiam a cada duas horas, um e-mail com nossa posição em mapa do Google. Era fácil perceber que estávamos relativamente quase parados em alto-mar, com diferença de apenas três milhas a cada duas horas.

O Spot ainda tem a função de enviar um sinal Mayday, uma chamada radiotelefônica de emergência ou socorro. A palavra é uma versão anglicizada do francês m'aider que significa "venha me ajudar". Utilizada principalmente nas navegações marítimas e aeronáuticas, faz parte do Código Internacional de Sinais.

Isso só é feito em caso de naufrágio, incêndio, ferimento grave ou pirataria. Mas só deve ser usado em situação de extrema gravidade. Não era o nosso caso.

No caso era o Pan-Pan, uma chamada para dizer que há uma emergência a bordo de barco, navio mas que, não há um perigo imediato de vida.  Não chegamos a emitir por rádio essa denominação.

As operadoras da Vitória Rádio se 0mostraram bastante preocupadas com a nossa situação e se esforçaram o máximo para solucionar o problema. Fica aqui registrado nossos agradecimentos.

Em breve relato no blog do Chagas (http://veleirointuicao.blogspot.com.br/), ele  disse que imediatamente ligou para os tripulantes do  veleiro Naumi que ele sabia estar em Vitória indo para o Rio.  A bordo estavam Nelson e Lúcia, conhecidos no mundo da vela pelas reportagens no blog do veleiro Avoante (http://diariodoavoante.wordpress.com/).

Tivemos o prazer de desfrutar a companhia deles em Santo André (BA), quando levavam o veleiro Naumi para o Rio de Janeiro. Nelson e Lúcia, de Natal, vivem a bordo do Avoante , um veleiro Velamar 33 que permanece a maior parte do tempo fundeado no Campinho, uma marina em Barra Grande, perto de Camamu, Bahia.

Reboque a R$ 6 mil

Ciente da situação do veleiro Timshel, sem leme, a deriva, precisando de reboque, Nelson entrou em contato com a empresa Zenith Marítima, localizada em Vitória, que elaborou um orçamento para o resgate. Mais algumas horas aguardando para levarmos um susto.

O resgate sairia por R$ 6 mil. Fomos comunicado pela Vitória Rádio. O comandante Ronaldo, ao conversar com Fábio, via Vitória Rádio (ele, por telefone), ironizou que este orçamento era destinado à alta cúpula da Petrobrás e que nós somos apenas uma embarcação de modestos velejadores de um pequeno veleiro de 30 pés, adquirida com muito penar.

Fábio apenas cumpriu sua obrigação de funcionário da empresa, mas ajudou ao passar  alguns telefones de contato para que Chagas entrasse em contato. Ele se empenhou. A maioria estava impossibilitada de ajudar, pois os barcos não estavam na região.

Ao final da tarde de segunda-feira, Chagas recebe a informação de que a embarcação JUMAR 4 estaria recolhendo suas redes e ia ajudar, mas que só chegaria na terça pela manhã, pois estava a 60 milhas do Timshel.

Nesse meio tempo, a Capitania dos Portos entrou em contato conosco diversas vezes. Em muitas ocasiões repetíamos a mesma informação. Eles queriam saber nossa posição (felizmente tínhamos GPS a bordo alimentado por placa solar e boas baterias, à noite), se tinha pessoas feridas a bordo, comida e água.
Relatamos que, felizmente, ninguém estava ferido. Tínhamos comida e água para mais alguns dias, embora a água doce, armazenada em um dos tanques, usada para lavar pratos havia terminado.
Acredito que foi por esse motivo que a Capitania não providenciou socorro imediato. Quero acreditar que, se tivéssemos dito que havia ferido a bordo e que não havia mais água, eles teriam mandado um helicóptero nos resgatar. Mas, na nossa situação, podíamos esperar. A nossa maior preocupação era com Elizabete, que suportava muito mal essa situação. A par isso, a moral a bordo, até que estava boa.
Na manhã de terça, recebemos outra notícia decepcionante. O pesqueiro Jumar 4 não poderia fazer o resgate por problema técnicos.

Segundo relato de Chagas a Vitória Rádio passou o nome do Bruno Martineli que disse que ao meio dia mandaria uma embarcação que sairia de Santa Cruz, na barra do rio Doce, para ajudar o nosso veleiro. Chegamos a falar com ele, que nos acalmou.

Perguntamos quanto sairia o resgate e ele disse que não cobraria nada. Não foi pela economia, mas é comovente saber que existem pessoas que estão a fim de ajudar apenas por solidariedade.

Mas tivemos novas decepções. Ao meio-dia, fomo informados que o barco teve problema no motor e não poderia sair. A própria Capitania ligou para Bruno para saber se havia outra forma de ajudar. Essa mesma embarcação, estava impedida de vir ao nosso socorro no dia anterior  devido a um barco encalhado na maré baixa que impedia a saída de outras embarcações.

Por volta da 13:00h, Chagas recebeu a informação de que um navio patrulha da marinha estava se preparando para dar apoio ao Timshel.

Mas ai, há um problema. É sabido que a Marinha Brasileira efetua o resgate de pessoas e não faz da embarcação. Mesmo assim, já estávamos no lucro, pois nosso maior problema a bordo era Elizabete. Ela, e o namorado Marcos Xavier, seriam então resgatados. Eu e o comandante Ronaldo ficaríamos a bordo para conduzir a embarcação a um porto seguro.

Carta na manga

Eu tinha uma “carta escondida na manga”, mas só queria usar caso fosse realmente necessário. Sendo sócio do Clube Naval de Brasília, eu fiquei amigo do velejador Bernando, filho do ex-Comandante do 2º Distrito Naval, Vice-Almirante Carlos Autran de Oliveira Amaral. Por pouco, eu não acionei Bernardo, casado com a oficial da Marinha Mirela, colega, assessora de imprensa, como eu, da Marinha.

Em 2011, participei com ele do IX Simpósio de Segurança do Navegador Amador, em Salvador, Bahia, onde participamos de cursos com aulas práticas sobre navegação com visibilidade restrita, resgate, homem ao mar, abandono de embarcação, coletes e balsas salva vidas, sinalização e pirotécnicos, transmissão May Day, resgate de náufrago por aeronave e resgate de náufrago por embarcação.

Em teoria, estava bem escolado. Só faltava a prática. Felizmente, não precisei utilizar todo conhecimento adquirido. Esse evento eu recomendo a todos que adoram e tem convívio com o mar. O evento acontece periodicamente e informações podem ser obtidas pelo site http://www.simposio.com.br.

Cheguei a anotar o número de telefone do Bernardo em um papel, retirado do meu celular. Não o fiz porque, de manhã, após 33 horas de deriva, já em alto mar, percebemos que perdemos contato com Vitória Rádio. Elas tentam entrar em contato, escutávamos o apelo, mas elas não nos escutava.

Só faltava essa. A minha melhor carta, talvez a mais poderosa, estava presa na manga. Eu só não insisti na possibilidade porque uma nova esperança surgiu.

Ponte em mar aberto

Perder o contato com nossa melhor base de apoio não era um problema tão grave. Havia como contornar, através de uma ponte.

A técnica é chegar via rádio até o local de interesse através de ponte com outros rádios no raio de alcance até chegar à Vitória Rádio. Essa possibilidade eu só conhecia na literatura náutica. Nunca tinha feito.

Assim, conseguimos contatar o rebocador Loc 6, que pelo que entendemos, estava rebocando uma plataforma da Petrobrás. Ele fez a ponte com a Vitória Rádio e com a Capitania dos Portos que, mais uma vez,  queria saber da nossa posição e se estávamos bem. Nós ouvíamos toda a conversa entre eles, mas eles não nos ouvia, devido a distância.

Foi através da ponte com o Loc 6 que ficamos sabendo que os barcos pesqueiros Jumar 6 e Rio Doce 7, estavam estariam na imediações, pronto para retornar à Vitória. Esperamos mais uma vez. Mas o rebocador Loc 6, estava indo em direção oposta à nossa, para o norte, Salvador. Ela se distanciava e também os sinais de rádio.

Procuramos outras embarcações para fazer a ponte e conseguimos contato com a plataforma de petróleo P59 que nos informou que as  duas embarcações não poderiam vir, devido a problemas técnicos. Mais uma decepção. Estávamos começando a ficar acostumados com tantas frustrações e também estávamos incrédulos.

Através dessa ponte com a P59, com operador de rádio bastante atencioso e solícito, que a Capitania dos Portos solicitou mais uma vez nossa posição e respondemos as mesmas perguntas em relação ao nosso estado físico e se tínhamos comida e água. Através dessa ponte, ficamos sabendo que Bruno estava empenhado em mandar mais uma embarcação ao nosso socorro.

De manhã, já desanimados, pensando em acionar meu amigo Leonardo de qualquer jeito, ao tentarmos contato com Vitória Rádio, com a ponte da plataforma P59, ouvimos no rádio mais uma esperança.

Eu, campeão??!!

“E ai campeão! Vocês estão na nossa rota. Vou buscar o material e passo ai pegar vocês”. Parecia bom demais para ser verdade. Depois de tantas tentativas e fracassos, não acreditávamos em mais nada.

Era Marcelo, comandante do pesqueiro Verdão, de Vitória. Ele tinha um sotaque bem carregado. Eu achava que era carioca. Ronaldo achava que era de mineiro.

“Tem idéia de quando?”,perguntou Ronaldo.

Nos chamando sempre de campeão, Marcelo  disse que às 14 horas iria recolher o material que depois fiquei sabendo era os espinheis. Seriam mais cinco horas de espera. Para quem já esperou 35 horas, isso não parecia nada. Eu só não me sentia campeão. Eu estava mais para lanterninha em uma corrida de obstáculo.

“Nossa!! Que riqueza!!!! Agora temos duas embarcações vindo ao nosso encontro? Difícil de acreditar”, comentei.

Havíamos sofrido tantas decepções que decidimos não deixar que uma embarcação que vinha ao nosso socorro soubesse da outra, para evitar que desistissem.

“Só vamos dispensar a outra quando estiver com o cabo de reboque na mão” disse Ronaldo.

Nisso, através da P59, um oficial da Capitania dos Portos, queria saber se havia outra embarcação vindo ao nosso encontro, pois Bruno já estava enviando socorro. Ficamos compelidos a confessar que já havia outra embarcação a caminho, mas, incrédulos, pedimos para não dizer nada a Bruno. Esse pedido, o oficial não atendeu, mas solicitou que Bruno ficasse de stand by , aguardando o desenrolar dos acontecimentos.

As 16 horas, Marcelo do pesqueiro Verdão, nos chamando de campeão, nos comunica que recolheu o material e que estava se preparando para vir nos resgatar e pediu nossa posição. Tive dificuldade em acreditar.

Mais tarde, já escurecendo, ele entra em contato para dizer que o recolhimento do material atrasou. Tudo bem!!! Para quem já esperou 40 horas. Isso não era nada. Comecei a acreditar que era verdade e que eles realmente viriam.

Perguntamos qual seria a sua rota. Ele informou ser 240º. Bastou ver a recíproca na bússola para constatar que ele viria a 60º. Estávamos corretos. Já de noite, vimos sua luzinha no horizonte, que foi aos poucos crescendo.

Eu preferi ficar atento. Os demais foram dormir, mas para passar o tempo. Apesar da sua luz ser visível, iria demorar umas boas horas para eles chegarem. E chegou. Ufa! Que alegria. Que alívio. 

A luzinha do pesqueiro Verdão foi crescendo e aos poucos fui percebendo que eram várias luzes, ou melhor várias lâmpadas estrobos piscando. Parecia uma árvore de Natal que me fez lembrar a história das luzes natalinas que há muitos séculos eram usadas para comemorar o solstício de inverno no hemisfério norte, momento onde as noites deixavam de ser longas e tenebrosas e os dias começavam a ter maior duração, evidenciando aos poucos a esperada primavera.

“E ai Robinson Crusué!!!!” gritou um dos tripulantes do pesqueiros que estavam tão felizes quanto a gente.

A aproximação do barco pesqueiro para nos jogar o cabo nos deixava apreensivos, pois as ondas de 2.5 metros dificultavam bastante a operação. Mas Marcelo foi muito habilidoso em não deixar as embarcações se tocarem.

Ronaldo procurou caprichar no cabo de proa que estava preso aos  dois cunhos. Na popa, ele colocou sua churrasqueira de aço, para criar um arrasto e deixar o barco sem leme mais estabilizado. Ai, para mim, começou a parte mais estressante de toda a jornada. Mais tarde, fiquei sabendo que me estressei à toa.

Ziguezague atormentador


Eu tinha encarado todo esse incidente e todas as nossas tentativas e decepções com certa serenidade e calma. Para mim, foi uma grande experiência. Mas fiquei muito tenso com o comportamento do barco ao ser rebocado.

Acontece que, sem leme, o Timshel  ia para boreste e bombordo em um ziguezague contínuo. Mas no extremo desse movimento, o barco alcançava velocidade maior e o cabo afrouxava.  Depois, havia um forte tranco e o barco era forçando ao outro lado, adernando bastante e provocando um forte burburinho n´água. Isso me deixava tenso.

Eu, sentado na proa, via o serpenteio do barco e achava que o tranco no cabo iria arrancar a parte superior da proa, justamente onde Elizabete estava dormindo ou deitada para o tempo passar. Fiquei imaginando o susto que ela iria tomar.

“Tudo bem ai. Você quer que ligue o nosso motor para ajudar”, perguntou Ronaldo à Marcelo pelo rádio.

“Tudo certo Campeão. A rotação do nosso motor está normal. Não há necessidade de vocês ligarem o motor de vocês, Campeão”, disse Marcelo.

Que alívio!!!. Eu até achei que o comandante do pesqueiro iria se recusar a nos rebocar, devido à tamanha instabilidade, pois o barco serpenteava  muito. Depois de tantas decepções, já estava com espírito preparado para encarar mais uma.

Estava sozinho no cockpit do Timshel, pois resolvemos fazer o turno e me voluntariei para ser o primeiro, pois estava excitando demais para dormir. Quis relatar o intenso ziguezague do barco ao Ronaldo, mas não quis acordá-lo.  Mas tarde, ele me disse que eu me estressei a toa, pois os dois cunhos que seguravam o cabo, eram presos abaixo por uma forte chapa de aço e que dificilmente o cunho soltaria ou a proa seria arrancada.

“Se ela fosse apenas parafusada, ai sim, corria esse risco”, disse Ronaldo Gaúcho.

Ok. Já sei o que fazer no meu barco. Verificar se os cunhos são apenas parafusados ou reforçados abaixo da proa com aço. Vivendo e aprendendo.

Para mim, assistir esse pendulo na horizontal foi uma tortura. Resolvi não olhar para frente. Sentei e fiquei de costas. Mas a tortura continuava, pois ouvia uma sequência massante. Primeiro, o barulho do motor do pesqueiro de um lado, boreste, logo a seguida o tranco, depois a virada do barco para outra direção, a adernada com intenso burburinho n´água, o barulho do motor do outro lado, o tranco novamente.

Essa seqüência me enlouquecia e tinha duas horas do meu turno nisso. Cheguei até a pensar em solicitar ao Ronaldo a vir tomar seu turno mais cedo. Mas fiz um exercício de meditação e me acalmei. Até que, alívio,  o cabo arrebentou. Achei que seria o primeiro de uma sequência, mas foi o início de uma situação mais amena, felizmente.

Sexta-feira

Ao arrebentar o cabo, chamei Ronaldo e Marcos para ajudar como também, pelo rádio, o comandante Marcelo, que esperou pacientemente arrumarmos o cabo nos dois cunhos.

“Campeão! Vou te jogar dois pneus para colocar na popa”, disse o pescador Marcelo pelo rádio. Dessa forma, o barco com esse arrastro iria ziguezaguear menos.

Estava na proa, sentado, pois era impossível estar de pé, com tanto balanço quando ouvi.

“Segura ai, sexta-feira!!!, disse um dos tripulantes.

De surpresa, um rolo de cabo grosso e molhado despencou sobre a minha cabeça. Aceitei de bom grado o susto e a denominação do personagem secundário do romance de Daniel Defoe.

Bem. Já tínhamos um Robinson Crusoe e um Sexta-feira a bordo. E também um ziguezague mais ameno. A churrasqueira, que Ronaldo tinha colocado na popa para criar arrasto, agora repousa no fundo do mar.  Os dois pneus que a substituíram realmente foi muito eficaz, estabilizou o barco e deixou  ziguezague mais tranqüilo.
O veleiro sem leme ziguezagueava no reboque. O cabo afroxava e depois vinha o puxão. Depois ele ia para o outro lado. Serpenteando sempre.

Chegou minha hora de dormir e voltei a ter serenidade. Fiz mais dois turnos de madrugada. No caminho, tive a satisfação de ver a plataforma de petróleo P59 que nos ajudou na ponte de contato com Vitória Rádio. Agradeci mentalmente a valiosa ajuda. A plataforma é um navio,  primorosamente iluminado inaugurado recentemente, segundo apurei, em julho de 2012, pela presidente Dilma Rousseff.

Vitória


Fui dormir já quase amanhecendo e não tive a satisfação de ver Vitória aparecendo ao longe. Quando acordei, já estávamos bem perto e já era bem visíveis a quantidade enorme de navios esperando atracar em um dos dois portos, o de Vitória e o de Tubarão.

Finalmente conheci por mar e terra a cidade que leva seu nome devido aos constantes ataques de indígenas, franceses e holandeses em Vila Velha. Os portugueses decidiram, então,  transferir a capital da capitania para a ilha próxima ao continente que teve seu nome, Vitória, em memória a uma grande batalha comandada pelo donatário da capitania contra os indígenas goitacás.

Polêmica a parte, toda essa faina, para mim foi uma vitória (letra minúscula). Agora sim, eu aceito o título de campeão que o comandante pescador Marcelo nos intitulava. Aliás, o desfecho dessa história, me emocionou.

“Agradecemos muito pela sua valiosa ajuda. Quanto devemos a  vocês”, perguntou Ronaldo.

Estávamos preparados a colocar a mão no bolso, quando ouvimos a resposta.

“Nada Campeão. Fiz isso por solidariedade marítima, disse Marcelo.

Nossa “odisséia” tinha começado com uma proposta de reboque de R$ 2 mil, subiu para R$ 6 mil e agora ele não quer nem mesmo ajuda para o diesel.

No entanto, fizemos uma vaquinha e entregamos junto com os pneus emprestados um envelope com R$ 400. Foi pouco, pelo tanto que eles fizeram pela gente.

Eu queria pegar esse dinheiro e fazer um belo churrasco com eles e colocar todo mundo de porre e brindarmos a solidariedade marítima. Ia ser muito divertido. Sempre gostei do convívio com pescadores, pois temos a paixão pelo mar como ponto em comum.

Mas estávamos muito cansados, exaustos. Inclusive eles. Nós só queríamos, em ordem de prioridade, um bom banho, uma refeição descente e uma cama. Infelizmente, com todo esse atraso imprevisto, tive que tomar o avião para São Paulo com o objetivo de visitar meu pai, no meu finalzinho de férias e depois voltar para Aracaju.

Tripulação do pesqueiro Verdão, que por solidariedade marítima nos tirou da deriva, sem traumas, para que pudéssemos continuar curtindo e amando o mar


Essa história ainda continua para o comandante Ronaldo Gaúcho. Além do prejuízo material do leme perdido ele ainda vai encarar a faina de reconstruí-lo, mais reforçado, no Rio de Janeiro, e trazê-lo de volta à Vitória, reinstalá-lo no Timshell e recompor tripulação para navegar até a sua base, Jurujuba Iate Clube, em Niterói.

Eu, fui o que mais lucrei com essa história, pois avalio o ocorrido como um valioso aprendizado e  uma experiência inestimável. Elizabete promete nunca mais colocar os pés em um barco e a Marcos cabe a difícil tarefa de convencê-la do contrário. De que é possível navegar e namorar em paz em um veleiro. Em águas abrigadas. Claro!!!! Concordam????



*Ivan Marinovic Brscan é jornalista, trabalha na Embrapa, em Aracaju, e é capitão amador da Marinha e juiz de regatas.

Comentários

  1. Caro Chagas, ou Chaguinhas como alguns o chamam,
    Fantástico o relato do Ivan que devido a sua profissão e capacidade soube nos transmitir a angústia e a felicidade do desfecho positivo.
    Parabens Ronaldo e Ivan pela sabedoria em administrar a situação e chegar a uma solução favorável.
    E um muito obrigado por estarem compartilhando conosco e permitindo que também possamos aprender lendo os seus relatos.

    Bons Ventos e leme sempre preso a todos,

    Abs
    Paulo Ribeiro
    Veleiro Bepaluhê



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  2. Excelente relato!! E para quem está iniciando na vela e só viveu ótimos momentos, é uma grande lição.
    Muito obrigada e parabéns a todos que em menor ou maior grau de participação, são todos heróis.
    Elizabeth, volta para o mar, vale a pena!!

    BV e abraços a todos

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